Os escritos que englobam os livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis levaram um longo tempo até a redação final deixando de sofrer acréscimos redacionais somente nos tempos de Esdras (final do IV, início do V século AEC[1]).
A pesquisa Bíblica chama esse conjunto de livros de Obra Historiográfica Deuteronomista e para estudarmos as perícopes do livro de Samuel deveremos considerar a teologia presente nesta obra. Isto prefigura que temos várias camadas de texto tais como: tradição primária, a história da ascensão de Davi, o ciclo da história de Saul, a redação profética, a redação josiânica e a redação exílica. Todas estas, costuradas na Obra Historiográfica Deuteronomista.
O hebraico veio a se tornar uma língua gramaticalmente estruturada a partir
do século X AEC, antes disso toda tradição Histórica de Israel estava na
oralidade. Documentos isolados foram surgindo no Norte e no Sul, os do norte
receberam o nome de Eloístas enquanto que os do sul de Javistas.
Muitos autores de escolas tradicionais atribuem a Samuel a autoria do livro que carrega seu nome. Embora consideremos que alguns registros possam ter sido feitos por Samuel, é ingenuidade pensar que toda redação do livro se deu a uma só mão. Se por este caminho seguirmos, somente os primeiros 24 capítulos do livro de 1 Samuel poderiam ser atribuídos ao profeta, já que o capítulo 25 retrata a morte do mesmo. Assim é possível dar crédito a Samuel, Natã, Gate e outros cronitas, pois o autor do livro de crônicas, cinco séculos depois nos diz o seguinte:
Os atos, pois, do rei Davi, tanto os primeiros como os últimos, eis que
estão escritos nas crônicas, registrados por Samuel, o vidente, nas crônicas do
profeta Natã e nas crônicas de Gade, o vidente, juntamente com o que se passou
no seu reinado e a respeito do seu poder e todos os acontecimentos que se deram
com ele, com Israel e com todos os reinos daquelas terras. 1 Cr. 29.29-30.
Existia até então pequenas coleções menores de diversas
fontes, sendo estas de cunho narrativo (lendas), sacerdotais e administrativas
(políticos) numa tentativa de registrar fatos importantes da monarquia. Tais
coleções foram compiladas posteriormente na época Josiânica e Exílica na Obra
Historiográfica Deuteronomista, cujo processo redacional explicaremos logo a
seguir:
As fontes Javista e
Eloísta e as tradições do Norte e do Sul
Com relação à nomenclatura da
fonte Javista, sua designação deu-se por ter sua origem em Judá (reino do Sul)
e por mencionar Deus por Yahweh[2]. Dentre suas
características estão um misto de modelo épico, por vezes simples, noutras
pomposas; costuradas nitidamente por expressões da tradição oral, ambientadas
dentro do perfil literário javista nitidamente mais garboso, composto por
extenso vocabulário. Gottwald exemplifica-nos bem tais características.
“conhecer” como eufemismo para relações sexuais; “invocar o nome de Yahweh” para adoração da divindade; “abençoar” como a ação benéfica da divindade para com os seres humanos e outras criaturas; “achar favor, ou graça” no sentido de “agradar alguém”; “de acordo com estas coisas”, ou seja, deste modo, à moda disto[3]
Esta certa erudição vem a
corroborar com a afirmação de muitos pesquisadores como sendo a fonte J
proveniente do ambiente da corte.
Outra voz redacional no período que cobre 900 – 850 AEC
com foco maior nas reminiscências do Israel primitivo surgem como documento. A
extensão da narrativa desta fonte vem desde história dos patriarcas até a terra
prometida, entretanto de uma maneira muito mais enaltecedora dos tempos tribais
primeiros. Seu autor, também desconhecido, exalta as tradições do norte
(Israel). É muito provável que fosse oriundo de Manassés ou Efraim, pois era
comum chamar o norte somente por Efraim.
Outra diferença é que o Autor de (E) retrata Deus por Elohim. Dessa maneira, e por esses dois
motivos (localização e teologia) seus relatos ficaram conhecidos por fonte
Eloísta (E). Por ser pertencente ao reino do Norte, defendia a aliança com Yahweh como mais importante que a
monarquia.
A Historiografia
Deuteronomista
Usando muito material do Norte outro estilo literário surgiu, este mais voltado às questões da aliança. esta fonte almejava instruir o povo acerca das antigas leis de fidelidade religiosa presentes no código da aliança de Yahweh para com Israel. Esse procedimento instrutivo é típico da tradição deuteronômica que ensina a guardar os preceitos da aliança de Javé andando pelo caminho e em quaisquer circusntâncias.
Quando o reino do norte desapareceu, foragidos do norte
que vieram habitar no sul trouxeram consigo a fonte deuteronômica.
Posteriormente no tempo do Rei Josias a fonte deuteronômica foi descoberta
entre os escombros do templo. A reforma religiosa promovida por Josias é a
primeira tentativa sulista de obedecer aos preceitos do deuteronômio. Com base nesta fonte a Obra Historiográfica Deuteronomista
começou a ser escrita. O objetivo primeiro desta era abranger as tradições do
norte e do sul ao contar a historia de israel.
Ainda sobre a teoria das fontes, podemos concluir que após a destruição do
reino do Norte 722 AEC a fonte (E) perdeu seu cenário e um redator do Sul (J) a
agregou. Contudo, acreditamos que pelo menos ao que se refere ao livro de
Samuel, tal interferência foi ampla, vindo a alterar a figura do primeiro
monarca Saul.
O livro de 1 Samuel constitui um emaranhado de narrativas, tradições,
lendas, interesses políticos e hipérboles a fim de transformar homens em heróis
e vilões nacionais.
Os documentos internos da
OHD[4] que interferem no livro
de 1 Samuel
Faremos uma tentativa de perceber em meio às várias camadas fatos
históricos, memórias populares, os escritos primeiros sobre Samuel, Davi, Saul
e a Arca da Aliança que serviram de respaldo às redações posteriores, de forma
que percebamos as diferentes vozes que contam a história de Saul.
Ciclo da Arca da Aliança
(1 sm 4,2.
10-11)
Pelos relatos contidos no livro de Samuel conseguimos identificar que
existiam escritos que retratam material proveniente da casa de Eli, quando o
mesmo residia em Siló. Entretanto ao ter o santuário mais importante destruído
pelos filisteus, Eli migra para Nob, instalando-se noutro santuário, próximo a
Jerusalém, conhecido na época por Jebus. Este é o ciclo histórico que podemos
apreender do material contido nos livros de 1 e 2 Samuel. Tal ciclo será elo
para justificar a monarquia em diversas passagens, até mesmo como justificativa
para Davi encontrar-se juntamente aos filisteus. E como sempre também será
fonte de contenda entre o sacerdócio instaurado e a monarquia emergente.
Ciclo de Samuel (1 Sm 7,6. 14-17)
Com relação ao juiz, profeta e sacerdote Samuel, os excertos que o
descrevem sofreram interferência das várias redações no decorrer da história. Entretanto,
ainda nos é possível apreender um pouco do homem Samuel em textos mais antigos
contendo suas atividades de juiz e levita. Pois ao fazer referência por
diversas vezes à cidade de Ramá, parece-nos que a atuação do mesmo era
amplamente conhecida ali, até mesmo como ro’eh[5], o que corrobora para defesa das anotações feitas nos
tempos de Samuel, haja vista, que o termo ro’eh
(vidente) que se aplicava anteriormente aos profetas, precisou ser
explicado, já que no exílio o mesmo era transcrito pela palavra nabhi’.
Sua memória teria
permanecido mesmo quando o santuário em Siló fora destruído. Com alguma segurança podemos afirmar tratar-se de um líder carismático com tendências centralizadoras; isso se justifica por ele possuir em casa um altar próprio. Sua atividade como juiz e sacerdote era de jurisdição relativamente pequena, embora amplamente difundida. Abrangia as tribos de Efraim e Benjamim (Norte), a saber: Betel, Guilgal, Masfa e Ramá, lugar este de sua residência. Assim, seu serviço enquanto juiz era circular por tais localidades prestando serviços jurídicos e religiosos, garantindo assim a paz em Israel.[6]
Ciclo da História de
Saul (
1Sm 9,1-10,16; 10-27b-11,15; 13,2-7ª.15b-23; 14-1-46; 31,1-13)
A história de Saul segue o padrão das narrativas dos juízes libertadores
como Sansão, por exemplo, e o livro vem entrecortando com fatos heróicos.
Saul enquanto homem emerge na narrativa como um guerreiro, um defensor da
riqueza de seu clã. Faz parte deste ciclo: um conto popular israelita das
jumentas perdidas, a narrativa da unção de Saul por Samuel, como investidas
contra os filisteus, informações sobre seus filhos, sua morte trágica e seu
funeral feito pelos habitantes de Jabes.
Ciclo da tradição de
Davi (1
Sm16 – 2 Sm5)
Contando episódios da história de Davi o centro da
narrativa de seu ciclo é o santuário de Hebrom. Perpassam neste ciclo,
narrativas de simpatia para com Jônatas, filho de Saul, o relato do casamento
de Davi com Micol, que o tornaria genro de Saul.
De acordo com esta tradição, Davi seria um dos homens (um
oficial) da corte de Saul; casado com a filha do mesmo e que fora acusado de
conspiração. Assim no sentido de salvar-se, foge para a região de Negev, e para
sua subsistência começa a prestar serviço para as famílias de Judá formando um
exército (de mercenários hapirus), que ora protegem Judá, ora usurpam quem
passa pela aquela região levando mercadorias e enriquecendo-se. No propósito de
ganhar força e hegemonia, alia-se a Aquis, o rei filisteu da cidade de Gat[7]
Sua caminhada começa ao partir o mesmo de sua propriedade
em Siceleg para ser rei sobre Judá, tornando sob seu domínio as tribos do sul
de Hebrom. Segundo 2Sm 2,4 este reinado seria de sete anos até que finalmente
seria ungido sobre todo Israel 2Sm 5,3.
Todavia, ao lermos 1Sm 16,14; 2Sm 5, podemos vislumbrar uma tentativa de
amarrar este ciclo histórico no sentido de legitimar também o trono de Israel
(norte) a Davi, mesmo que este tenha se unido anteriormente ao inimigo
Filisteu.
Concluindo...
Neste estudo mencionamos as questões redacionais, tais
como a história da redação, com foco nas fontes eloístas e javistas com suas
tradições norte sul e as influências que as mesmas causaram ao período. Sem esquecermos-nos
de mencionar a Obra Historiográfica Deuteronomista com seus documentos internos
que demarcam os ciclos da história da arca, de Samuel, de Saul e de Davi.
[1] Gottwald aponta para o século V,
enquanto Dietrich, para os fins do século IV nas obras anteriormente
referenciadas.
[2] Nome que oriundo da grafia Alemã
lê-se Jahweh ou Jahwist. Assim a
fonte J é uma referência direta a forma de anunciar Deus como Yahweh. GOTTWALD. N. op.cit., p.111.
[4] Obra Historiográfica
Deuteronomista
[5] Há de termos em mente que na
época da compilação de Samuel, tal termo que tem por tradução vidente, não se
aplicava ao sentido contemporâneo da palavra e sim como profeta de Deus.
[6] Já mencionamos quando falamos em
tribalismo que as tribos não tinham os doze nomes dos filhos de Jacó. Para uma
melhor noção da variedade de tribos. Consultar Jz. 4 e 5 .
[7] É significativo o número de
documentos contendo o ciclo de Aquis, no qual o nome de Davi é mencionado por
diversas vezes.
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