segunda-feira, 9 de julho de 2012

História da Redação do texto nos livros de Samuel

Teoria das fontes


Os escritos que englobam os livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis levaram um longo tempo até a redação final deixando de sofrer acréscimos redacionais somente nos tempos de Esdras (final do IV, início do V século AEC[1]). 
A pesquisa Bíblica chama esse conjunto de livros de Obra Historiográfica Deuteronomista e para estudarmos as perícopes do livro de Samuel deveremos considerar a teologia presente nesta obra. Isto prefigura que temos várias camadas de texto tais como: tradição primária, a história da ascensão de Davi, o ciclo da história de Saul, a redação profética, a redação josiânica e a redação exílica. Todas estas, costuradas na Obra Historiográfica Deuteronomista.


O hebraico veio a se tornar uma língua gramaticalmente estruturada a partir do século X AEC, antes disso toda tradição Histórica de Israel estava na oralidade. Documentos isolados foram surgindo no Norte e no Sul, os do norte receberam o nome de Eloístas enquanto que os do sul de Javistas.

Muitos autores de escolas tradicionais atribuem a Samuel a autoria do livro que carrega seu nome. Embora consideremos que alguns registros possam ter sido feitos por Samuel, é ingenuidade pensar que toda redação do livro se deu a uma só mão. Se por este caminho seguirmos, somente os primeiros 24 capítulos do livro de 1 Samuel poderiam ser atribuídos ao profeta, já que o capítulo 25 retrata a morte do mesmo. Assim é possível dar crédito a Samuel, Natã, Gate e outros cronitas, pois o autor do livro de crônicas, cinco séculos depois nos diz o seguinte:  


Os atos, pois, do rei Davi, tanto os primeiros como os últimos, eis que estão escritos nas crônicas, registrados por Samuel, o vidente, nas crônicas do profeta Natã e nas crônicas de Gade, o vidente, juntamente com o que se passou no seu reinado e a respeito do seu poder e todos os acontecimentos que se deram com ele, com Israel e com todos os reinos daquelas terras. 1 Cr. 29.29-30.



Existia até então pequenas coleções menores de diversas fontes, sendo estas de cunho narrativo (lendas), sacerdotais e administrativas (políticos) numa tentativa de registrar fatos importantes da monarquia. Tais coleções foram compiladas posteriormente na época Josiânica e Exílica na Obra Historiográfica Deuteronomista, cujo processo redacional explicaremos logo a seguir:


As fontes Javista e Eloísta e as tradições do Norte e do Sul

Com relação à nomenclatura da fonte Javista, sua designação deu-se por ter sua origem em Judá (reino do Sul) e por mencionar Deus por Yahweh[2]. Dentre suas características estão um misto de modelo épico, por vezes simples, noutras pomposas; costuradas nitidamente por expressões da tradição oral, ambientadas dentro do perfil literário javista nitidamente mais garboso, composto por extenso vocabulário. Gottwald exemplifica-nos bem tais características.         



 “conhecer” como eufemismo para relações sexuais; “invocar o nome de Yahweh” para adoração da divindade; “abençoar” como a ação benéfica da divindade para com os seres humanos e outras criaturas; “achar favor, ou graça” no sentido de “agradar alguém”; “de acordo com estas coisas”, ou seja, deste modo, à moda disto[3]

 

Esta certa erudição vem a corroborar com a afirmação de muitos pesquisadores como sendo a fonte J proveniente do ambiente da corte. 

Outra voz redacional no período que cobre 900 – 850 AEC com foco maior nas reminiscências do Israel primitivo surgem como documento. A extensão da narrativa desta fonte vem desde história dos patriarcas até a terra prometida, entretanto de uma maneira muito mais enaltecedora dos tempos tribais primeiros. Seu autor, também desconhecido, exalta as tradições do norte (Israel). É muito provável que fosse oriundo de Manassés ou Efraim, pois era comum chamar o norte somente por Efraim.

Outra diferença é que o Autor de (E) retrata Deus por Elohim. Dessa maneira, e por esses dois motivos (localização e teologia) seus relatos ficaram conhecidos por fonte Eloísta (E). Por ser pertencente ao reino do Norte, defendia a aliança com Yahweh como mais importante que a monarquia.
 

A Historiografia Deuteronomista


Usando muito material do Norte outro estilo literário surgiu, este mais voltado às questões da aliança. esta fonte almejava instruir o povo acerca das antigas leis de fidelidade religiosa presentes no código da aliança de Yahweh para com Israel. Esse procedimento instrutivo é típico da tradição deuteronômica que ensina a guardar os preceitos da aliança de Javé andando pelo caminho e em quaisquer circusntâncias.

Quando o reino do norte desapareceu, foragidos do norte que vieram habitar no sul trouxeram consigo a fonte deuteronômica. Posteriormente no tempo do Rei Josias a fonte deuteronômica foi descoberta entre os escombros do templo. A reforma religiosa promovida por Josias é a primeira tentativa sulista de obedecer aos preceitos do deuteronômio.  Com base nesta fonte a Obra Historiográfica Deuteronomista começou a ser escrita. O objetivo primeiro desta era abranger as tradições do norte e do sul ao contar a historia de israel.

Ainda sobre a teoria das fontes, podemos concluir que após a destruição do reino do Norte 722 AEC a fonte (E) perdeu seu cenário e um redator do Sul (J) a agregou. Contudo, acreditamos que pelo menos ao que se refere ao livro de Samuel, tal interferência foi ampla, vindo a alterar a figura do primeiro monarca Saul.

O  livro de 1 Samuel constitui  um emaranhado de narrativas, tradições, lendas, interesses políticos e hipérboles a fim de transformar homens em heróis e vilões nacionais.
 

Os documentos internos da OHD[4] que interferem no livro de 1 Samuel
 

Faremos uma tentativa de perceber em meio às várias camadas fatos históricos, memórias populares, os escritos primeiros sobre Samuel, Davi, Saul e a Arca da Aliança que serviram de respaldo às redações posteriores, de forma que percebamos as diferentes vozes que contam a história de Saul.


Ciclo da Arca da Aliança (1 sm 4,2. 10-11)

Pelos relatos contidos no livro de Samuel conseguimos identificar que existiam escritos que retratam material proveniente da casa de Eli, quando o mesmo residia em Siló. Entretanto ao ter o santuário mais importante destruído pelos filisteus, Eli migra para Nob, instalando-se noutro santuário, próximo a Jerusalém, conhecido na época por Jebus. Este é o ciclo histórico que podemos apreender do material contido nos livros de 1 e 2 Samuel. Tal ciclo será elo para justificar a monarquia em diversas passagens, até mesmo como justificativa para Davi encontrar-se juntamente aos filisteus. E como sempre também será fonte de contenda entre o sacerdócio instaurado e a monarquia emergente.


Ciclo de Samuel (1 Sm 7,6. 14-17)

Com relação ao juiz, profeta e sacerdote Samuel, os excertos que o descrevem sofreram interferência das várias redações no decorrer da história. Entretanto, ainda nos é possível apreender um pouco do homem Samuel em textos mais antigos contendo suas atividades de juiz e levita. Pois ao fazer referência por diversas vezes à cidade de Ramá, parece-nos que a atuação do mesmo era amplamente conhecida ali, até mesmo como ro’eh[5], o que corrobora para defesa das anotações feitas nos tempos de Samuel, haja vista, que o termo ro’eh (vidente) que se aplicava anteriormente aos profetas, precisou ser explicado, já que no exílio o mesmo era transcrito pela palavra nabhi’.

Sua memória teria permanecido mesmo quando o santuário em Siló fora destruído. Com alguma segurança podemos afirmar tratar-se de um líder carismático com tendências centralizadoras; isso se justifica por ele possuir em casa um altar próprio. Sua atividade como juiz e sacerdote era de jurisdição relativamente pequena, embora amplamente difundida. Abrangia as tribos de Efraim e Benjamim (Norte), a saber: Betel, Guilgal, Masfa e Ramá, lugar este de sua residência. Assim, seu serviço enquanto juiz era circular por tais localidades prestando serviços jurídicos e religiosos, garantindo assim a paz em Israel.[6]


Ciclo da História de Saul ( 1Sm 9,1-10,16; 10-27b-11,15; 13,2-7ª.15b-23; 14-1-46; 31,1-13)
 
A história de Saul segue o padrão das narrativas dos juízes libertadores como Sansão, por exemplo, e o livro vem entrecortando com fatos heróicos.

Saul enquanto homem emerge na narrativa como um guerreiro, um defensor da riqueza de seu clã. Faz parte deste ciclo: um conto popular israelita das jumentas perdidas, a narrativa da unção de Saul por Samuel, como investidas contra os filisteus, informações sobre seus filhos, sua morte trágica e seu funeral feito pelos habitantes de Jabes.


Ciclo da tradição de Davi (1 Sm16 – 2 Sm5)

Contando episódios da história de Davi o centro da narrativa de seu ciclo é o santuário de Hebrom. Perpassam neste ciclo, narrativas de simpatia para com Jônatas, filho de Saul, o relato do casamento de Davi com Micol, que o tornaria genro de Saul.

De acordo com esta tradição, Davi seria um dos homens (um oficial) da corte de Saul; casado com a filha do mesmo e que fora acusado de conspiração. Assim no sentido de salvar-se, foge para a região de Negev, e para sua subsistência começa a prestar serviço para as famílias de Judá formando um exército (de mercenários hapirus), que ora protegem Judá, ora usurpam quem passa pela aquela região levando mercadorias e enriquecendo-se. No propósito de ganhar força e hegemonia, alia-se a Aquis, o rei filisteu da cidade de Gat[7]

Sua caminhada começa ao partir o mesmo de sua propriedade em Siceleg para ser rei sobre Judá, tornando sob seu domínio as tribos do sul de Hebrom. Segundo 2Sm 2,4 este reinado seria de sete anos até que finalmente seria ungido sobre todo Israel 2Sm 5,3.  Todavia, ao lermos 1Sm 16,14; 2Sm 5, podemos vislumbrar uma tentativa de amarrar este ciclo histórico no sentido de legitimar também o trono de Israel (norte) a Davi, mesmo que este tenha se unido anteriormente ao inimigo Filisteu.



Concluindo...



Neste estudo mencionamos as questões redacionais, tais como a história da redação, com foco nas fontes eloístas e javistas com suas tradições norte sul e as influências que as mesmas causaram ao período. Sem esquecermos-nos de mencionar a Obra Historiográfica Deuteronomista com seus documentos internos que demarcam os ciclos da história da arca, de Samuel, de Saul e de Davi. 













[1] Gottwald aponta para o século V, enquanto Dietrich, para os fins do século IV nas obras anteriormente referenciadas.
[2] Nome que oriundo da grafia Alemã lê-se Jahweh ou Jahwist. Assim a fonte J é uma referência direta a forma de anunciar Deus como Yahweh. GOTTWALD. N. op.cit., p.111.
[3] GOTTWALD, N. ibidem, p. 238.

[4] Obra Historiográfica Deuteronomista
[5] Há de termos em mente que na época da compilação de Samuel, tal termo que tem por tradução vidente, não se aplicava ao sentido contemporâneo da palavra e sim como profeta de Deus.
[6] Já mencionamos quando falamos em tribalismo que as tribos não tinham os doze nomes dos filhos de Jacó. Para uma melhor noção da variedade de tribos. Consultar Jz. 4 e 5 .
[7] É significativo o número de documentos contendo o ciclo de Aquis, no qual o nome de Davi é mencionado por diversas vezes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário